O corpo é meu. Mas não está sozinho. Quantas vezes descuramos a mente? Quantas vezes minoramos o corpo? Como se um e outro fossem distintos, imiscíveis, como se um não se refletisse no outro. Como se um não tivesse influência direta no outro. E no entanto, há vezes em que desprezamos, repudiamos até, um e outro. Corpo e mente, grandes ou pequenos, limitam-nos. E, no entanto, se conseguirmos encontrar um equilíbrio perfeito entre um e outro, têm o poder de nos ilimitar. Fazem-nos correr mais rápido ou refutar preconceitos com maior afinco. Um e outro, corpo e mente. Há alturas em que um nos fica aquém, por vezes com as expetativas que temos – ou têm – nele. Ganhamos ou perdemos peso, os dias parecem-nos cinzentos e opacos. E uma coisa leva a outra, quando damos por isso estamos com um corpo e uma mente que não (re)conhecemos. E estes períodos podem efetivamente arrastar-se por meses, anos, décadas. Ao ponto em que esta massa e este vazio começam a confundir-se com quem somos. E então, a partir de certo ponto, começamos a acreditar que assim somos. Não vemos diferença entre nós e aquela pessoa no espelho, na sombra, nós. Como se não bastasse, as pessoas com quem lidamos no dia a dia começam igualmente a acreditar que aquela carne despegada, aquele olhar vazio é nosso. E tudo isto se arquiteta na construção de uma imagem que passa a ser a nossa. Quando nos esquecemos e se esquecem de quem éramos, passamos a ser aquilo que somos. Qual a diferença entre ser e não ser se não há dia, mês, ano em que não sejamos assim em vez de assado? Quem distingue? Quem arbitra? Eu? Tu? Não é por acaso que quando nos conseguimos a agarrar a uma, por vezes inesperada, luz, sentimos estranheza. Será este o caminho que quero tomar? Será este o caminho que preciso tomar na vida para voltar a ser – acho, não sei – aquilo que fui antes? Como ter a certeza se tanto o corpo como a memória te falham e permaneces na ignorância até lá chegares? Mas seguimos caminho, nem sempre com a honesta motivação que dizemos ter a quem nos ouve. Quantas vezes ficámos pelo caminho e lá regressámos ao nosso olhar vazio, ao nosso peso que nos esmaga um dia de cada vez. Pior, quantas vezes já nos obrigámos a colocar a máscara da boa-disposição, da eteeerna boa-disposição para que este abate que nos assola, corpo e alma, nunca chegue a ser o foco dos meus – e vossos – olhares. E lutamos, sem saber como ou porquê, por vezes com a motivação de uma simples palavra, murros no ar, caminho incerto, mas lá vamos. E uma vez que seja, chegamos a algures. É-nos vagamente familiar, tocamos aqui e ali, inspiramos fundo e reconhecemos este cheiro de uma outra vida. Sim, é este o espaço que ocupo – e ocupamos -, corpo e mente. E se há quem estranhe alguma mudança, se há quem sinta saudades do sorriso sempre posto, da disponibilidade sem hesitação, do sim e nunca do não, então é porque não percebe que na realidade sente falta de máscaras que não estou, nem estamos dispostos a colocar. Já não.